Ponte de Pedra

by - sábado, abril 04, 2009



"Marco Polo descreve uma ponte, pedra a pedra.
_Mas qual é a pedra que sustém a ponte? - pergunta Kublai Kan.
_A ponte não é sustida por esta ou por aquela pedra - responde Marco, - mas sim pela linha do arco que elas formam.
Kublai Kan permanece silencioso, reflectindo. Depois acrescenta:
_Porque me falas das pedras? É só o arco que me importa. Polo responde:
_Sem pedras não há arco."


in Cidades Invisíveis, de Italo Calvino (1972)


Já é normal olharmos para as coisas sem as vermos. Estamos cada vez mais a substituir o "porquê?" pelo olhar resignado. Desconhecemos o fundo das questões, e assim nos queremos manter. Vemos um todo, sem descortinar. Sem ver os limites das peças de puzzle que compõem tudo o que vive e tudo o que é morto e inerte. Tudo nos aparece feito, e confortavelmente acendemos a luz da mesa da cabeceira como se isso fosse só isso. Como se não estivessemos a accionar mil mecanismos apenas com um pequeníssimo gesto.

Nunca pensamos no equilíbrio. Caminhamos equilibrados sobre algo equilibrado, para um lugar equilibrado. Inconscientemente, procuramos o desiquilíbrio na natureza, na aventura, no descobrimento, no desconcerto, na novidade, no arrebatamento da liberdade.
Pedra a pedra, construímos o nosso arco, invisível, absoluto e onírico, que lá está, composto de vidas, vida, a nossa. Podemos atravessá-lo para o outro lado, para lá, lá, mas nunca pisá-lo. Pairamos. Pássaros de betão, ágeis mártires presos na dúvida.

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2 comentários

  1. Como é já sabido, uma imagem (neste caso a correspondência entre duas) vale mais do que mil palavras.
    Mais uma bela... coincidência.

    Porquê?

    *

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  2. De todas as tuas citações, esta é sem dúvida a minha favorita. Desconheci-a, mas impressionou-me muito. Já muitas vezes tentara dizer algo do género, mas nunca tivera o sucesso que Calvino teve, na sua tão feliz formulação. A tua reflexão, por seu lado, não é nada indigna da citação. É uma das que eu mais gostei. Falas da nossa incapacidade de vermos as coisas, por as simplificarmos, por as recortarmos da realidade em que elas existem e são o que são, daquilo que as possibilita e as faz. Abrangemos mil mecanismos com um gesto indiferente. Para além disso, sendo nós feitos de equilíbrio, de complexidade, procuramos a simplicidade da quebra, sacrificamos a extensão à intensidade. Há uma fuga a nós, tal como há uma fuga às coisas. Talvez fujamos porque necessitamos de um todo e, lá no fundo, saibamos que o verdadeiro todo, o tecido subtilíssimo da realidade, é extremamente difícil, se não impossível. Então resvalamos para o todo míope, o todo abstracto, o todo do momento intenso e obcecado. Procuramos o prazer em vez da harmonia, porque no esquecimento do prazer temos uma vivência simbólica da harmonia – e na busca árdua da harmonia, somos gravemente confrontados com a falta dela e depostos numa missão vital. Por isso fugimos e exultamos na fuga, gozando distraidamente apenas uma imagem daquilo que é verdadeiramente exultante.

    Há um aspecto que tu não focaste directamente e sobre o qual eu gostaria de reflectir um pouco. O nosso olhar recortador não apenas isola e absolutiza fragmentos no que diz respeito aos objectos, não percebendo a sua complexidade interna e o todo orgânico em que respiram, mas também em relação aos momentos da nossa vida temos um tal olhar abstracto. Olhamos para cada um deles como uma torre existindo por si, pairando no vazio, isolada. A vida seria uma sequência dessas torres. Não percebemos que cada gesto espalha os seus efeitos sobre a totalidade da vida, sobre o futuro e sobre a forma como vemos o passado. As diversas situações por que passamos na vida não estão imunes umas às outras. Se nos dedicamos demasiado a algo, isso afecta o nosso olhar no momento seguinte. Se nos viciamos em algo, perdemos força da vontade e num momento posterior teremos a nossa capacidade de acção limitada. Se vivemos uma vida de esforço interior constante, de aprofundamento de nós mesmos, sem relaxar no domingo à tarde ou nuns dias a meio do Verão, para descansar, mas apenas transformando o esforço, orientando-o doutra maneira, para fugir ao embrutecimento da rotina – então a nossa capacidade de acção será inflacionada e teremos a capacidade de mais facilmente reinterpretar e transformar cada situação por que passamos na vida, encontrando nela um sentido e uma forma de ser encorporada na nossa vida, enriquecendo-a.

    Cada momento da nossa vida (incluindo a hora da refeição, os dez minutos que demoramos a chegar a algum lado, o serão de prazer) está incorporado num intrincadíssimo equilíbrio que não existe fora desses momentos, como se nós tivessemos uma personalidade ou uma vida que é imune ao que fazemos, ao modo como conduzimos a nossa atenção a cada instante, àquilo a que nos consagramos. Pelo contrário, nós estamos continuamente a fazer a nossa vida, de tal modo que o entusiasmo ou o desalento que sentimos, a força ou a fraqueza que temos, tudo isso decorre de imensas pequenas decisões, pequenos actos ou pequenas inacções, que se aglomeram em grandes actos ou grandes inacções. Contudo, nós achamos que podemos dar-nos ao luxo de nos negligenciar por ora, recuperando mais tarde com um acto determinado. Não percebemos que a negligência se aglomera e que mais tarde teremos de lutar contra uma inércia mais resistente – de tal modo que sentiremos não ter forças e não estar à altura de ser quem ainda assim achamos que deveríamos ser. Deformamos as pedras e depois espantamo-nos ao ver o monstro em que a ponte se transforma. Mas só nos espantamos porque temos um olhar desatento, que com uma ficção, com uma pseudo-simplicidade, esconde a natureza íntima das coisas. Não concordas?

    Protréptico

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